quarta-feira, 2 de julho de 2014

O Craque das Crônicas se Apresenta para oJogo







CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE 


Há tempos, fui á rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E confesso: – sempre considerei Olaria tão longí­nqua, remota, utópica como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na Avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exí­lio só equiparáveis aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: – recrudesceu em mim o sentimento contra qualquer espécie de viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão nova e eletrizante.
Eis o fato: – um jogador qualquer enfiou o pé na cara do adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não conversa: – esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um tapa: – é, na verdade, o mais transcendente de todos os atos humanos. Mais importante que o suicí­dio, que o homicí­dio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.

Acresce o seguinte: – o som! E, de fato, de todos os sons terrenos, o único que não admite dúvidas, equí­vocos ou sofismas é o da bofetada. Sim, amigos: – uma bofetada silenciosa, uma bofetada muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: – ví­tima e agressor cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável cordialidade. À o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza, que a torna irresgatável.
Pois bem: – na bofetada de Olaria não faltou o detalhe auditivo. Mas o episódio não esgotaria ainda seu horror. Restava o desenlace: – a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve medidas: – deu no pé. Convenhamos: – é empolgante um pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarce, nenhum recato. Digo “empolgante” e acrescento: – rarí­ssimo ou, mesmo, inédito.
Via de regra, só o heroí­smo é afirmativo, é descarado. O herói tem sempre uma desfaçatez única: – apresenta-se como se fosse a própria estátua equestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: – chega em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então, na mais rigorosa intimidade ” apanha da mulher. Mas cá fora, à luz do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques de polí­cias especiais.
Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, que renegam, que desfiguram a própria covardia ” o juiz correu como um cavalinho de carrossel. Note-se: Há hoje toda uma monstruosa técnica de divulgação, que torna inexequí­vel qualquer espécie de sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa covardia fotografada, irradiada, televisionada projetou-se irresistivelmente. E quando, em seguida, a polí­cia veio dar cobertura ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos ser covardes í s escondidas, tí­nhamos inveja, despeito e irritação dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cí­nico estandarte.

[Manchete Esportiva, 17/12/1955]



RODRIGUES, Nelson. Conveniência de ser covarde. IN À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol. Seleção e notas Ruy Castro.São Paulo : Companhia das Letras, 1993.


O livro completo está disponível AQUI



sábado, 21 de junho de 2014

Bloqueio Criativo





Quem nunca se deparou com a imensidão do papel em branco que anseia pelas palavras, mas estas se recusam a surgir,  a se submeter? Como romper essa barreira, o que fazer?
Muitos dicas já foram sugeridas, mas a que eu acho realmente mais eficiente é escrever. Isso mesmo! Parece bastante óbvio, mas não é. Escrever é um exercício e quanto mais rotineiro melhor. 
O meu bloquei mais recente foi escrever sobre uma imagem. Escolhi uma imagem que me chamou muito a atenção, mas que sabia que seria desafiadora, pois não tinha ideia de como criar um texto a partir dela. Tentei um texto infantil, mas não funcionou, uma crônica, nada surgiu. Não fiz o texto. 
Meu erro foi querer reinventar a roda, numa tentativa  de superação procurei espontaneamente o caminho mais difícil. Que bobagem! Não funcionou a minha tentativa de "terapia de choque" para vencer a impossibilidade de escrever. O bloqueio arreganhou seus dentes para mim e fiquei paralisada além de frustrada.Tudo bem, aprendi a lição.
Recuso conscientemente essa prisão e numa fuga azul alada me declaro livre. Ótimo, bloquei vencido e texto escrito.






quarta-feira, 28 de maio de 2014

Erro eu, erra você, erramos nós.





Errar, além de humano é cotidiano. Erramos em doses homeopáticas várias vezes ao dia: erramos o caminho para o trabalho, a senha do banco, o nome de alguém, a letra de uma música cantarolada distraidamente, a questão da prova. Cometer erros não é um problema, faz parte da nossa natureza. 
A  história da humanidade é uma coletânea de erros, por exemplo,  os troianos erraram ao levarem o cavalo de madeira para dentro de suas muralhas, Napoleão pisou feio na bola  ao tentar invadir a Rússia, Alexandre Fleming graças a um erro descobriu a penicilina e a lista continua...
Tento imaginar uma vida sem erros e, simplesmente não consigo. Estar correto o tempo todo deve ser muito aborrecido. É abrir mão  da descoberta do novo e deixar de lado mais uma oportunidade de aprender. Qual a graça?
Contudo, a reação diante do erro me intriga, tanto de quem erra, que se sente constrangido e humilhado, como de quem aponta o erro, que, muitas vezes, não tem nem um pouco de empatia.
Lembro do tempo de escola e minhas redações salpicadas de traços vermelhos, ou os odiosos ditados, que diga-se de passagem, foram feitos para provocar a dúvida e o erro, verdadeiras arapucas. Quem nunca passou pelo constrangimento de uma caneta vermelha impiedosa que, de verdade, só serve para nos deixar embaraçados?
Não faço apologia ao erro, ninguém quer errar, é claro, mas não temos como fugir, está em nosso destino. Nossa sina é errar. Precisamos é aprender a lidar melhor com os nossos erros e falhas, e com os dos outros também. Mais paciência, por favor!

********

Em sua coluna de quatro de fevereiro de 1968, no Jornal do Brasil, Clarice Lispector pede ao linotipista, mais compreensão e respeito com seus erros:


"Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão direita foi queimada. Segundo, não sei por quê. Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E, se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar. Escrever é uma maldição."     (Clarice Lispector, "A descoberta do mundo".)

********

Música boa para encerrar.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A Escrita Salva


Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.    


A história de um Raimundo, para quem a "rima" foi a solução. Linda história! Mas também muito triste! 




**********
Condicionado no dicionário quer dizer: imposto como condição. Raimundo, "O Condicionado", sofreu uma violência corriqueira, insidiosa e traiçoeira, a perda da expressão, do seu lugar de sujeito. Tentaram condicionar sua existência ao silêncio de seu discurso. 
A violência é, infelizmente, uma realidade em nossa sociedade. É claro que evoluímos, construindo limites e padrões de civilidade que não permitem mais atrocidades como escravidão e tortura, por exemplo. Porém é óbvio, que ainda não chegamos lá. Mas, onde é lá? Lá é o lugar em que as pequenas violências causam indignação e não se naturalizam.
Quantas vezes calamos a voz do outro sem nem mesmo percebermos? Na escola  crianças aprendem que a única voz válida é a do professor, no trabalho, muitas vezes, só o chefe tem voz, os políticos ignoram a voz dos seus eleitores. 
Raimundo conseguiu romper a concha do ostracismo, e abandonou a "ilha" que lhe foi reservada. Sua escrita tornou-se  a forma de sua expressão, seu grito incondicional de alerta. "Desgraçado do homem que se abandona" e se cala.

**********

Raimundo nasceu no dia 1º de agosto de 1938, na zona rural de Goiás. Chegou a São Paulo com 23 anos. Foi jardineiro e vendedor de livros. É morador de rua desde 79, no mesmo local desde 96. Um verdadeiro poeta! Tem um diário e escreve suas “mini páginas”, que distribui para quem passa por ele. Todas têm data de nascimento e um número de série. Assina suas obras como “O condicionado”.
Neste link mais detalhes da história de vida do Raimundo.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Cartas de Amor


Minha melhor escrita,  mais espontânea e viva. 

                          
                                             





terça-feira, 20 de maio de 2014

Mar da Palavra


Uma noite de lua cheia,  escondido atrás de um cega-machado florido, curumim vê os  mentuctires. Como são fortes! Sonha em ser como eles. Mas agora parece que o erefuê o pegou, o menino sente fraqueza, a cabeça dói e a pituíta borbulha quando respira.
Amanhã a mãe vai ter que sair cedo para crestar precisa fazer o remédio ruim que o curumim tem que beber para melhorar. E o pai vai ter que trazer pitu para o menino ficar bem. Ele não gosta de pitu porque dá lienteria. E quando o pajé chegar para cantar e acabar com sua fraqueza e dor tem que lembrar de fazer o rapapé. Depois, ele poderá voltar a sonhar.

*********

crestar - tirar o mel de (colmeia), colhendo parte dos favos.

erefuê - fluido negativo, oriundo de espíritos sem luz.

lienteria - diarreia em que as substâncias ingeridas são eliminadas sem que se tenha feito a digestão.

mentuctire - divisão dos índios caiapós que habita nas proximidades da cachoeira von Martius, no Xingu.

pituíta - secreção, mucosa glutinosa.

*********


Invadir o dicionário, conquistar seus verbetes, brincar com o significado. Navegar no mar da palavra, sem medo,  com entusiasmo, rumo a novas descobertas ao sopro da imaginação.