Fonte: Literatura na Arquibancada
CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE
Há tempos, fui á rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E confesso: – sempre considerei Olaria tão longínqua, remota, utópica como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na Avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: – recrudesceu em mim o sentimento contra qualquer espécie de viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão nova e eletrizante.
Eis o fato: – um jogador qualquer enfiou o pé na cara do adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não conversa: – esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um tapa: – é, na verdade, o mais transcendente de todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o homicídio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.
Acresce o seguinte: – o som! E, de fato, de todos os sons terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofismas é o da bofetada. Sim, amigos: – uma bofetada silenciosa, uma bofetada muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: – vítima e agressor cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável cordialidade. À o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza, que a torna irresgatável.
Pois bem: – na bofetada de Olaria não faltou o detalhe auditivo. Mas o episódio não esgotaria ainda seu horror. Restava o desenlace: – a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve medidas: – deu no pé. Convenhamos: – é empolgante um pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarce, nenhum recato. Digo “empolgante” e acrescento: – raríssimo ou, mesmo, inédito.
Via de regra, só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói tem sempre uma desfaçatez única: – apresenta-se como se fosse a própria estátua equestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: – chega em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então, na mais rigorosa intimidade ” apanha da mulher. Mas cá fora, à luz do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques de polícias especiais.
Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, que renegam, que desfiguram a própria covardia ” o juiz correu como um cavalinho de carrossel. Note-se: Há hoje toda uma monstruosa técnica de divulgação, que torna inexequível qualquer espécie de sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa covardia fotografada, irradiada, televisionada projetou-se irresistivelmente. E quando, em seguida, a polícia veio dar cobertura ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos ser covardes í s escondidas, tínhamos inveja, despeito e irritação dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cínico estandarte.
[Manchete Esportiva, 17/12/1955]
RODRIGUES, Nelson. Conveniência de ser covarde. IN À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol. Seleção e notas Ruy Castro.São Paulo : Companhia das Letras, 1993.
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