quarta-feira, 28 de maio de 2014

Erro eu, erra você, erramos nós.





Errar, além de humano é cotidiano. Erramos em doses homeopáticas várias vezes ao dia: erramos o caminho para o trabalho, a senha do banco, o nome de alguém, a letra de uma música cantarolada distraidamente, a questão da prova. Cometer erros não é um problema, faz parte da nossa natureza. 
A  história da humanidade é uma coletânea de erros, por exemplo,  os troianos erraram ao levarem o cavalo de madeira para dentro de suas muralhas, Napoleão pisou feio na bola  ao tentar invadir a Rússia, Alexandre Fleming graças a um erro descobriu a penicilina e a lista continua...
Tento imaginar uma vida sem erros e, simplesmente não consigo. Estar correto o tempo todo deve ser muito aborrecido. É abrir mão  da descoberta do novo e deixar de lado mais uma oportunidade de aprender. Qual a graça?
Contudo, a reação diante do erro me intriga, tanto de quem erra, que se sente constrangido e humilhado, como de quem aponta o erro, que, muitas vezes, não tem nem um pouco de empatia.
Lembro do tempo de escola e minhas redações salpicadas de traços vermelhos, ou os odiosos ditados, que diga-se de passagem, foram feitos para provocar a dúvida e o erro, verdadeiras arapucas. Quem nunca passou pelo constrangimento de uma caneta vermelha impiedosa que, de verdade, só serve para nos deixar embaraçados?
Não faço apologia ao erro, ninguém quer errar, é claro, mas não temos como fugir, está em nosso destino. Nossa sina é errar. Precisamos é aprender a lidar melhor com os nossos erros e falhas, e com os dos outros também. Mais paciência, por favor!

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Em sua coluna de quatro de fevereiro de 1968, no Jornal do Brasil, Clarice Lispector pede ao linotipista, mais compreensão e respeito com seus erros:


"Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão direita foi queimada. Segundo, não sei por quê. Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E, se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar. Escrever é uma maldição."     (Clarice Lispector, "A descoberta do mundo".)

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Música boa para encerrar.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A Escrita Salva


Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.    


A história de um Raimundo, para quem a "rima" foi a solução. Linda história! Mas também muito triste! 




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Condicionado no dicionário quer dizer: imposto como condição. Raimundo, "O Condicionado", sofreu uma violência corriqueira, insidiosa e traiçoeira, a perda da expressão, do seu lugar de sujeito. Tentaram condicionar sua existência ao silêncio de seu discurso. 
A violência é, infelizmente, uma realidade em nossa sociedade. É claro que evoluímos, construindo limites e padrões de civilidade que não permitem mais atrocidades como escravidão e tortura, por exemplo. Porém é óbvio, que ainda não chegamos lá. Mas, onde é lá? Lá é o lugar em que as pequenas violências causam indignação e não se naturalizam.
Quantas vezes calamos a voz do outro sem nem mesmo percebermos? Na escola  crianças aprendem que a única voz válida é a do professor, no trabalho, muitas vezes, só o chefe tem voz, os políticos ignoram a voz dos seus eleitores. 
Raimundo conseguiu romper a concha do ostracismo, e abandonou a "ilha" que lhe foi reservada. Sua escrita tornou-se  a forma de sua expressão, seu grito incondicional de alerta. "Desgraçado do homem que se abandona" e se cala.

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Raimundo nasceu no dia 1º de agosto de 1938, na zona rural de Goiás. Chegou a São Paulo com 23 anos. Foi jardineiro e vendedor de livros. É morador de rua desde 79, no mesmo local desde 96. Um verdadeiro poeta! Tem um diário e escreve suas “mini páginas”, que distribui para quem passa por ele. Todas têm data de nascimento e um número de série. Assina suas obras como “O condicionado”.
Neste link mais detalhes da história de vida do Raimundo.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Cartas de Amor


Minha melhor escrita,  mais espontânea e viva. 

                          
                                             





terça-feira, 20 de maio de 2014

Mar da Palavra


Uma noite de lua cheia,  escondido atrás de um cega-machado florido, curumim vê os  mentuctires. Como são fortes! Sonha em ser como eles. Mas agora parece que o erefuê o pegou, o menino sente fraqueza, a cabeça dói e a pituíta borbulha quando respira.
Amanhã a mãe vai ter que sair cedo para crestar precisa fazer o remédio ruim que o curumim tem que beber para melhorar. E o pai vai ter que trazer pitu para o menino ficar bem. Ele não gosta de pitu porque dá lienteria. E quando o pajé chegar para cantar e acabar com sua fraqueza e dor tem que lembrar de fazer o rapapé. Depois, ele poderá voltar a sonhar.

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crestar - tirar o mel de (colmeia), colhendo parte dos favos.

erefuê - fluido negativo, oriundo de espíritos sem luz.

lienteria - diarreia em que as substâncias ingeridas são eliminadas sem que se tenha feito a digestão.

mentuctire - divisão dos índios caiapós que habita nas proximidades da cachoeira von Martius, no Xingu.

pituíta - secreção, mucosa glutinosa.

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Invadir o dicionário, conquistar seus verbetes, brincar com o significado. Navegar no mar da palavra, sem medo,  com entusiasmo, rumo a novas descobertas ao sopro da imaginação.



Revoada








Romance LIII ou Das Palavras Aéreas 

"Ai, palavras, ai, palavras, 
que estranha potência, a vossa! 
Ai, palavras, ai, palavras, 
sois de vento, ides no vento, 
no vento que não retorna, 
e, em tão rápida existência, 
tudo se forma e transforma! 

Sois de vento, ides no vento, 
e quedais, com sorte nova! 

Ai, palavras, ai, palavras, 
que estranha potência, a vossa! 

Todo o sentido da vida 
principia à vossa porta; 
o mel do amor cristaliza 
seu perfume em vossa rosa; 
sois o sonho e sois a audácia, 
calúnia, fúria, derrota... 

A liberdade das almas, 
ai! com letras se elabora... 
E dos venenos humanos 
sois a mais fina retorta: 
frágil, frágil como o vidro 
e mais que o aço poderosa! "


MEIRELES, C. Antologia poética. São Paulo: Global, 2013 (fragmento).

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Uma Brasília, muitas histórias.



A escritora nigeriana Chimamanda Adiche fez uma palestra para o TED, em julho de 2009, na qual alertava para o perigo de uma história única. Quando criança Chimamanda lia livros infantis britânicos e americanos. Escritora precoce, reproduzia, aos 7 anos,  em suas histórias o que lia, ou seja, seus personagens eram loiros, bebiam cerveja de gengibre e celebravam um dia de sol como um evento raro. Como os livros  não traziam em suas narrativas pessoas como ela, de cabelos crespos e pele escura, ela reproduzia somente o que lia. Ao ler escritores africanos ela, obviamente, compreendeu que a literatura era muito mais ampla, o que mudou sua percepção, ou  em suas palavras: "... o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são".
Bem, mas o que isso tem a ver com Brasília? Brasília sofre da síndrome de uma história única. Eu mesma antes de morar aqui conhecia somente uma história sobre este lugar e que envolvia aspectos nada interessantes como corrupção, burocracia e até mesmo o título, nada elogioso, de ilha da fantasia. Vim para Brasília não por escolha própria, mas por causa da profissão do meu marido e não tinha grandes expectativas em relação à cidade, tudo levando por causa do que já ouvira sobre Brasília. Não vim predisposta a não gostar, mas tinha quase certeza que não iria me encantar.
Cheguei em um mês de abril e a cidade me recebeu com um verde esplendoroso. Devo confessar que sou apaixonada por árvores que, para mim,  simbolizam generosidade e partilha. Eu não sabia que em Brasília havia tantas árvores, quanto verde! Meu coração desprevenido começou a se render, Brasília sem alarde, ia docemente me conquistando.
E como são diferentes as árvores daqui, quanta variedade! Há as curvilíneas que desafiam as leis da física sem a menor cerimônia, as grandiosas como as figueiras brancas e as frutíferas carregadas de mangas e jacas. 
Mas, então, chegou a famigerada seca.  O sol impiedoso reinava absoluto tostando tudo e todos. Queimadas se alastravam, dizimando minhas adoráveis árvores e espalhando uma névoa desagradável sobre a cidade. Sentia que seria capaz de sorver todo o Paranoá de um gole só para aplacar a secura e sede constante. O verde se fora, me senti traída por Brasília, precisávamos discutir a relação.
Foram cinco longos meses de desentendimento, desconforto e desconfiança entre Brasília e eu. Porém, no finalzinho de setembro surge um barulho que eu não esperava, pois não sabia do que se tratava, eram as mensageiras das chuvas, as cigarras. Cantavam o dia todo, sabiam que a chuva já vinha e era hora da vida se refazer,  um novo ciclo se iniciava. E a chuva chegou abundante, forte, insistente lavando a cidade, a alma das pessoas e terminando a seca. Em uma semana tudo se transformou e o verde batia na minha janela pedindo passagem, e as cigarras ainda cantavam , aliás a cidade cantava. Brasília desferia seu golpe final: desfilava diante de meus olhos admirados  os Ipês carregados de flores e os Flamboyants, com sua explosão vermelha e seus galhos quase tocando o chão convidando para um descanso. Não há como recuar, meu coração se rende, sem luta.
Hoje eu reconheço em Brasília várias histórias. A odisseia de sua construção, a dedicação das pessoas para que a cidade florescesse, a natureza exuberante, a burocracia, .... Termino com as sábias palavras de Chimamanda que resumem o que aprendi com Brasília: "Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre algum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso." Eu reconquistei o meu.





Flamboyant em frente ao Tribunal de Justiça do DF



vestígios das mensageiras da chuva





Se tiver um tempinho, assista à palestra, vale a pena.




No blog  Brasília Poética  há uma variedade de poemas ,  textos e fotos sobre brasília, sua história e os desafios de sua construção.





Fragmentos de Brasília



O  idealizador:




Música e poesia:





Arte:





Os que pensam que são donos da cidade:





Os verdadeiros donos da cidade:




Um Behrro:


funcional e funcionária

lógica e lírica

amada e mamada

construída
por uma raça de gigantes

somos todos
cobaias

***

  
seria provisória
mas não
a história

no início 
toda de tábuas

hoje em dia
quem diria
a memória
se dissolve 
em alvenaria

***      
(“Brasifra-me” – Nicolas Behr)